domingo, 22 de fevereiro de 2009

O último Incenso


" O Amor é velho, o amor é novo, o amor é tudo, o amor é  você"  

(Because, Beatles).

Havia cinzas esparramadas pela mesa, nos dedos entre tantas partes de seu corpo. Cheirava canela, dessas de crença indiana de amor verdadeiro. A fumaça circulava em pequenos pedaços brancos desenhando o destino que ele não sabia onde havia colocado. Talvez tivesse guardado seu destino numa prateleira na parte mais alta da casa. Inacessível pelo seu tamanho, inacessível por sua vontade. O destino restava esquecido, guardado, escondido nas lamentações que não transpassavam sua carne.
Junto à mesa havia a melodia mansa de um violino tristonho. O aroma amargo do café lembrava o gosto cítrico da saudade dos tempos da infância, quando o primeiro frio na barriga apareceu. Sentado na cadeira da escola, olhando dentro dos primeiros olhos mestiços que findavam sua alma. O sorriso sutil que despertava a primeira ágape* dos sonhos... A platônica da carteira à frente, a primeira garota por quem ele perdeu o fôlego. Tudo isso desaparecia com a fumaça do incenso, se dissipando no ar.
Por um breve momento ele notou os fios brancos do cabelo caírem sem querer. Metade dos seus dias passados, as rugas, a aposentadoria e tantas atividades que por mais que fossem bem-vindas não eram mais as mesmas. Escalar a pedra mais alta enquanto o oceano se debruçava em maresia. Memórias de um tempo que fugia nas vozes da roda de bar, no cheiro forte do absinto. A fada verde fora perdida na avenida da juventude e agora só o que lhe sobrava era permanecer na estação da velhice.Junto com os filhos crescidos, imagens em papel carbono espalhados pelo mundo.
Ruan permanecia casado na Irlanda, Olívia divorciada pela quinta vez em algum lugar da Zona Sul de São Paulo. E o envelhecido Luís Eduardo, pai e viúvo adormecia na sacada sentindo a brasa do passado evaporar pela visão.

—Talvez seja isso mesmo.

Dizia ele abrindo a janela. O incenso estava quase no fim, e o maço que restava ao lado do incensário evidenciava. Era o último incenso.

—É engraçado pensar que tínhamos tantos incensos espalhados pela casa —Continuou ele mantendo a chama acesa. Sua meta era preservar aquela chama até o final, quando restasse somente cinzas. —Éramos nós dois, pares conjuntos de tudo o que acreditávamos ser. Eu roubei o seu primeiro beijo e naquela época me admirava tanto por ter sido exatamente eu. Agora vejo que foi você quem roubou minha alma. Parados, inertes em nossas vidas, brigávamos desde o café da manhã até meados do jantar. Você tinha a calma de uma brisa e o sorriso de uma manhã de verão... Minha ninfa, minha eterna gueixa dos sonhos. Absorvida em livros de misticismo. —as palavras saiam engasgadas, Luís respirou profundamente e terminou sua fala — cada lembrança que tenho de você é um sentido que perco.

Lágrimas cheias derramavam alternadamente, preenchendo o quarto com suavidade de um sentimento imaculado. Os anjos choravam junto a ele, lacrimejavam por terem arrancado seu aspecto mais precioso. Sentiam culpa, por a terem levado.
Parado com os pés inertes no chão, as cinzas logo eram limpas pelas lágrimas que caíam por cima de sua mão. O significado de tal lamúria estava num bilhete minúsculo amarelado pela exposição ao tempo. Estava escrito numa caligrafia sutil:

“Cinnamon, Meu bem. Hoje o nosso aroma é de Cinnamon, canela para ser mais exata. Ternura e Harmonia, meu amor.  È o que desejo para nós nesse momento... São quinze anos (quase dezesseis) e ainda vejo você com os mesmos olhos de quando completamos sete dias. Por isso meu bem, não desejo amor nessa data, pois sei que seria gananciosa, pois o que sentimos um pelo outro já é suficiente por mais de uma década... Eu te amo, Luís”.

O bilhete balançava com o vento que entrava como um intruso pela casa. Tocava sua face como um carinho imergido do silêncio, numa caricia invisível e sem tato. Aquele momento para ele significava dor e sentimento, já que ele presumia que o vento calmo queria lhe dizer algo.
—A gente nunca sabe o dia em que um desastre vai acontecer... Hoje eu sei que a neblina quando se torna negra é um prenuncio que algo de ruim está por vir. Naquela tarde de dezembro a neblina cobria o céu. Como sempre a primeira coisa que fiz quando acordei foi olhar para o seu lado da cama. Tive um espanto quando encontrei só cobertas remexidas. Desci as escadas notando a casa muito quieta. As crianças dormiam cada uma em seu quarto, fui até a cozinha, uma vez que meu coração dizia que você estava ali! Afinal era o que você fazia, zelava por nosso bem estar, preparando o café da manhã.
Quando não te encontrei na cozinha fui em direção à garagem. A maioria das mulheres prefere o banheiro por causa das loções e dos cremes de cabelo, mas você adorava a garagem.
Desde que viajamos para o interior de Goias e você aprendeu com aquele hippie que usava a camiseta do Bob Marley como transformar essências em incenso, vivia fazendo experimentos o dia todo. O melhor incenso, a melhor mistura... Tenho que ser sincero—Soluçava ele com um sorriso taciturno.—Eu adorava servir de cobaia sentindo os cheiros daquelas “varetinhas” aromáticas que você fazia. E quando menos esperava acabei amando sua arte em talhar incensos, assim como amava cada pedacinho de você.

O dialogo com o silêncio se tornava intenso, confissões saiam de sua boca. Anos guardando aquela dor e naquele momento o vazio havia transformou-se nela. Seu coração suspirava  trazendo a ilusão que aquelas palavras iam direto até ela. E ali ele conversou com o céu, falava em direção ao paraíso. Que permanecia além do teto daquele apartamento desgastado.Depois de algum tempo, Luis continuou:

—Quando cheguei até a garagem notei que o carro não estava ali, minha surpresa foi grande quando olhei em cima da mesa, e observei entre pedaços de resina e potes de vidro. Estava uma caixa com um laço vermelho, junto a um bilhete cravado na lateral... Foi então que eu soube, aquilo era uma surpresa pra mim! Mas por que uma surpresa? Afinal não passava de um sábado qualquer. Resolvi esperar, e fazer café para as crianças. Mas você não apareceu para o café. E tão pouco apareceu para o almoço... Quando o telefone tocou. Queria ouvir sua voz, mas era um homem... Falava algo sobre um acidente de carro e você num hospital! Minhas pernas tremeram quando pensei na possibilidade de algo ter te acontecido... Deixei as crianças com a vizinha e fui até o hospital . Acelerei o carro e passei diante os semáforos . Tendo em mente que se fosse rápido, ainda podia fazer algo. Quando cheguei no hospital ouvi da boca de um daqueles doutores:
"Fizemos o possível, Senhor... no entanto... sua esposa não..."
—Helena! Não!!!!!!! —Ele gritou enquanto seus braços cruzavam instintivamente abraçando si próprio,  sua mente o levou de novo para àquele lugar. Depois de um longo intervalo, ele prosseguiu.— Eu ainda me lembro o quanto eu gritei por você na esperança que aquilo fosse apenas um engano. Eu não devia, mas quis ver o teu corpo... E você estava tão linda meu amor, ainda carregava nossa aliança... Ainda tinha lábios rubros, e ali preso diante súplicas de volta, foi impossível me despedir de você.
Corri para o carro e desafiei os faróis outra vez. A morte não me aceitou, e quando notei, entrava em casa novamente. Corri para suas roupas, queria sentir teu cheiro, precisava do seu colo, eu precisava de você! Abracei camisetas e vestidos que permaneciam jogados fora do guarda roupa. E em meio aquela dor me lembrei daquele embrulho... Ainda cambaleando, fui até a garagem. Abri aquele embrulho, e aquelas palavras entraram dentro de mim... Me culpei diante da dor... Me culpei, por ser exatamente a data do aniversário do nosso aniversario de  casamento e eu sequer havia me lembrado até aquele momento.
—Havia muitos incensos junto aquele bilhete. Estavam tão perfumados que tive dó de acender. Aquele cheiro de canela me fez ter forças para cuidar de tudo. Criei nossos filhos. E por algum momento enxerguei o teu rosto neles, especialmente em Olívia. Os dias se foram e sua ausência me sufocava, tive dores de solidão em todo instante fora da rotina...
E assim meu amor cada dia quando o escuro se aproximava, acendia um dos incensos que você havia deixado como presente naquele mesmo embrulho. E aquela chama me levou a segurar os pontos até aqui. Por todas as datas, em todos nossos aniversários. Acendi um incenso para chegar até você. Mas e agora , Helena? Agora, acendi o último incenso e quando ele se apagar? Então o que será de mim? O que será de nós? Acho que única coisa que devo dizer é que te amo meu amor... Mas acho que você sempre soube disso.

Luís fechou os olhos por alguns instantes, enquanto o vento levava as cinzas a dançar numa valsa de amor eterno que circulou num aroma doce por todo quarto e logo desapareceu pela janela para fora.
O último incenso então se apagou.
­­­­­­­­­­­­
_________________________________________________
*Ágape (em grego "αγάπη", transliterado para o latim "agape"),é uma das diversas palavras gregas para o amor.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

AHHHHHHH!

Que vontade de gritar... Já Fevereiro e posso dizer que ainda estou em Julho e nem enxerguei Janeiro passar. Eu trabalhei como ”free lancer”, enxagüei pratos. Escutei Rolling Stones, dormi cedo, dormi tarde. Mas parece que o tempo é o maior estripador de todas essas agonias. Tento escrever e tenho crises de perfeccionismo, mesclados a vícios de linguagem. Repito sentimentos, repito palavras. E por isso tenho vontade gritar.... Por repetir coisas, ou pelas coisas se repetirem.
Vida, passos, passos vidas. Livros cheios de traças, um escritor cheio de traças... Um conto de cinqüenta e nove folhas que nunca se adapta num final adequado. Casa e paredes que parecem estar interligadas numa atmosfera paranóica de pó e fuligem. Alguém entende o que é loucura? Na idade média acreditava-se que a loucura era a marca da besta (dá pra acreditar....?). No século dezenove, a loucura virou sinônimo de genialidade. A moda era um matemático sofrer de esquizofrenia ou sair de pijamas pela rua.
A loucura é relativa, todos nos sofremos de alguma dose que nos enlouquece. Fixação por chocolates, fobia por aranhas. È exato, todo ser humano sofre de alguma anormalidade.
A minha com certeza deve ser alienação combinada com vários complexos dramáticos. Algo como superar uma queda, sempre aguça minha mente. Sou mestre em introspecção, mestre em ficar perdendo meu tempo com blogs e algo do tipo. Mestre em voltar para o limbo sorrindo e logo voltar chorando.
È, eu assumo minha loucura. Assumo dar cambalhotas para trás na faixa de pedestre. Assumo fazer caretas para crianças com menos de sete. Assumo sofrer uma mutação ligada as máscaras cênicas do teatro... Algo meio Otelo/Chaplin. Substancia terrível de tristeza e alegria em que pulsa desesperadamente em menos de dez segundos.
Levantar risos, fazer chorar...
Moldar o rosto, ter nariz de palhaço, feição de mímico... Coração de poeta que perdeu sua amada. Aborreço com minhas definições de mim mesmo. Mas fazer o que, o grito é meu... Afinal como diria Lispector (Lispector? Isso até parece marca de aspirador).

“O que não me falta é ter esse direito ao grito”.

Então eu grito, ou melhor, escrevo que gritei... Ou grito enquanto escrevo. (Grito camuflado).