quarta-feira, 28 de abril de 2010

Do Outro Lado da Roleta



"Antes assassinar uma criança em seu berço que acalentar desejos não realizados"
(William blake, Matrimônio do céu e do inferno).

Eu estava bem até entrar naquele ônibus... Estava satisfeito com todas as coisas que podia estar satisfeito. Havia controlado todos os meus instintos premeditados, havia tirado a melhor nota na prova imprevista. Tudo corria bem, até... Até que eu entrei naquele ônibus!

Quem sabe eu podia ter tido uma vida diferente... Ser alguém melhor com uma nova chance de futuro. Podia comer o que quisesse agora... E não uma comida que sabe lá onde, ou como, foi preparada. Podia usar roupas novas e dormir numa cama só minha. Podia estar com uma garota, uma linda garota de seios fartos invés de uma foto de revista que me propõe só a imaginar.

Sei que esse podia não existe mais.

A gente pensa melhor nas coisas quando elas passam e não voltam mais. (Isso é um fato!).

Depois disso só o que se resta é um monte de “podias” e um punhado de “se ao menos fosse diferente”.

Eu não vou dizer que sou inocente. Assumo a culpa! Simplesmente assumo a culpa. Eu quis pegar aquela caneta e cravá-la até o sangue jorrar alto e respingar no meu supercílio, e foi naquele instante que acordei... Ainda consigo sentir a mesma sensação de alívio junto com aqueles gritos de dor sendo revividos pouco a pouco pelos os olhos esbugalhados e meu coração sujo de ódio, lavado por aquela fisionomia de agonia!

Você nunca pensa que vai matar alguém. Não sei se isso tem a ver com o pensamento humanitário que a mídia introduz através de banners e filmes com finais felizes, esses de fácil entendimento... Entre duas e três piscadas, você compreende: Matar é errado, homicídio leva à cadeia, assassinos são assassinos e pessoas são pessoas, sendo desumano causar uma morte!

Eu não era diferente de você antes de ter cometido um crime (também acreditava naqueles mesmos preceitos) . Fazia as compras no final do mês, trabalhava até as cinco horas e o resto do dia estudava procurando uma vida melhor (Continuamente procurando uma vida melhor!). Com melhores condições e melhores estruturas, com um vale alimentação mais extenso, sempre o melhor quando o melhor já se tem (Por que a gente nunca tem noção disso? Por que não podemos nos contentar quando a realidade não é crua e cheia de colchões pelo chão?)

Nunca tive raiva que não pôde ser controlada, nunca voei no pescoço de alguém por me sentir nervoso. Ou soquei uma parede num ato impreciso de fúria... Nunca! Nunca... Até entrar naquele ônibus! Eu nunca havia assassinado um membro da minha própria espécie antes de subir por aquelas escadas pequenas... E talvez, não sei... Nunca tivesse o feito se não fosse por aquele instante!

As pessoas conversavam no ponto de ônibus, a garoa havia começado de manhãzinha e persistia até a noite.

—Você tem um cigarro?

Uma mulher havia me perguntado quando a chuva aumentou. Eu tinha o hábito de ir para um ponto afastado longe da universidade, onde passavam os intermunicipais (ônibus que cruzavam as outras cidades, mas que também paravam perto de casa). Porém naquele dia eu não havia pego o guarda chuva e estava me curando de um resfriado. Então achei melhor ficar ali mesmo e esperar o ônibus que demorava mais, no entanto também me dava acesso ao bairro em que eu morava.

—Desculpe, eu não fumo! —Tentei responder cordialmente a mulher—.

Pensando agora eu nunca tive vícios. Nunca gostei de bebidas ou cigarros. Minha tranqüilidade estava em correr de manhãzinha, ou atravessar uma trilha calmamente perto da serra. Era calmo, antes de... Deus! Eu era calmo!!!

—Você tem horas?

A mulher me perguntou novamente, depois de alguns minutos. Quando eu observava as gotas de chuvas refletidas no farol dos carros que avançavam pela curva.

—Doze para as dez!

Era inevitável que ela estava dando bola pra mim. Apesar de mais velha, ela tinha um corpo atraente e uma fisionomia que não era de se jogar fora. Eu devia ter corrido no camelô da esquina e pedido um maço de cigarros acompanhado de um pacote de camisinhas. Devia ter largado a timidez de lado, puxado a mulher de quanto, deixando com que o calor de nossos corações servisse de condução até um motel de fim de noite. Longe daquele ponto. Longe de qualquer ônibus onde pudéssemos fazer sexo até o último entreter. Entretanto fiquei em silêncio preocupado com o pouco tempo que havia me sobrado para estudar a matéria chata de filosofia para a prova do dia seguinte.

Assim que desviei o olhar da mulher para observar a chuva numa ansiedade de quem está esperando, vi as pessoas se movimentarem formando uma fila aos avessos. Alguns cortavam, outros apenas esperavam como eu. E o ônibus estava lá! Parado sinalizando em neon laranja os locais por onde passava. Na medida em que fui chegando perto do veículo, notei uma lama aglomerada entre as rodas. As gotas de chuva escorrendo pela lateral se misturando pouco a pouco com a poeira mal lavada na lataria. E aquele aspecto metálico rufando com o barulho do motor... Aquele seria o começo do meu pesadelo.

Tirei o cartão de passe da mochila e fui sendo conduzido pela fila de um modo quase mecânico. Modo que me lembrou como as vacas entram em fila, tímidas e sem expectativa a caminho do matadouro. Acostumadas pelo ambiente, perdem o instinto animal e não pressentem o perigo, assim como não pressentem nada além da função de reproduzir e comer. Ventou quando entrei no ônibus, um vento frio quase fantasmagórico. Ajeitei a mochila no ombro ainda esperando algumas pessoas passarem pela roleta. Cada uma delas pegava o cartão e pressionava contra o pequeno painel azul que ficava fixado entra as hastes acima da roleta que ficava em baixo, no meio, dividindo o ônibus entre frente e trás.

O cobrador era um cara com sono, apenas verificava com o canto direito do olho se tudo corria bem enquanto a roleta liberava a passagem automaticamente. Desejando no fundo de sua real preguiça que ninguém pagasse em dinheiro e o forçasse a se mover por alguns instantes para apertar um botão mecânico que fazia a liberação. O barulho de liberação da roleta evidenciava pra mim uma sociedade motora, composta de pessoas de óculos e livros na mão. Um sistema de faculdades e concursos públicos, motorizado, agindo conforme a programação geral, ritmando, ressarcindo, controlando e sendo controlado a todo instante pelo capital.

Uma sociedade que eu só observaria outra vez pelas folhas do jornal.

Chega a minha vez, estou com o cartão de passes na mão, faço o mesmo ato robotizado e duas campainhas apitam. É um som diferente do que já havia sido tocado para os outros. Forço minha barriga contra a roleta, pensando que ela estivesse sido liberada automaticamente, mas ela não se move...

—Passa de novo!

Resmungou o cobrador sem mudar a postura. Fiz o mesmo movimento com o cartão e nada! O mesmo som, a mesma roleta que não girava, o mesmo olhar irritado do cobrador. Três, talvez quatro ou cinco tentativas e ainda a roleta permanecia parada. Uma fila se estendeu atrás de mim. Pessoas bufando de impaciência, outras gritando no lado de fora dizendo que queriam entrar logo e sair da chuva! Senti uma gota de insegurança transcorrer pela minha axila. Perdido, peguei a carteira e contei as moedas. Míseros centavos e uma nota de um real que palpitavam numa fé cega de chegar ao valor exato ou ultrapassá-lo... A última moeda escapa dos meus dedos e tilinta no estranho carpete plástico do ônibus.

A fila se estende mais, sei por causa das vozes altas que reclamam: Indignação, falta de paciência tudo aglomerado num dia chuva (as pessoas ficam piores quando se molham). Eu não acho a moeda, meu desconforto vira agonia. O mundo está contra mim, o ônibus está contra mim! Sinto todos os bancos, todas as cordas pretas, todas as poltronas... Tramando contra mim, Onde estava a moeda? Eu não sabia! Como não sabia o que me esperava depois da roleta. Um passaporte para algo que certamente eu não queria ir. Se eu tivesse um pouco de fé nas coisas que não podem ser ditas, se tivesse uma percepção exaltada sobre o destino... Eu poderia descrever o ato de meu cartão ser recusado pelo sistema do ônibus, assim como as vaias dirigidas a mim como um sinal de “não ultrapasse”...

Mas eu ultrapassei!

A decisão foi instintiva, deixei de procurar a moeda. Peguei o cartão outra vez e o encostei no painel azul... Minha força, minha vontade de passar para ou outro lado do ônibus veio com um som monofônico e logo a catraca se mexeu. E eu ultrapassei! O outro lado oposto da roleta não era muito diferente do anterior, as mesmas cadeiras, o mesmo chão de plástico e algumas pessoas entretidas com a paisagem da janela. O ar parado fez com que eu tossisse. Aconcheguei-me num banco ao lado da janela, abracei a mochila como sempre fiz e esperei que o ônibus iniciasse sua rota. As pessoas entravam, devagar, com muita pressa, com pouca pressa, mas ninguém ficou estagnado na roleta como eu fiquei.

Abraço a mochila novamente numa noção de afeto perdido... O último abraço que tive não veio de um ser humano cheio de pele e calor. Mas sim de um objeto envolta de tecido sintético, rústico que cheirava a algo próprio... Alguma coisa me lembrou naquele momento o cheiro de água e carro novo. Tudo misturado num último abraço. Você nunca imagina que vai sentir falta de coisas tão bobas como abraçar sua mochila voltando pra casa. Ou a sensação de largar os sapatos se sentar no sofá. Comodidade, casa, afeto, essas coisas fazem falta quando as tiram de você!

Quando reparei a porta da frente havia fechado, todas as pessoas já haviam se agrupado no ônibus. E o veículo seguiu o seu caminho. O primeiro indício de que as coisas não iriam ser agradáveis veio de uma gargalhada atrás de mim. Algo que invadiu meu inconsciente e me requisitou um frio na barriga. Era um riso sarcástico, zombeteiro e familiar para o meu desagrado. Minha esperança era que aquilo fosse apenas uma ilusão do passado, mas foi perdida quando virei o rosto procurando o mandante da risada. E o vi! O mesmo traço imbecil, a mesma cara de arrogante que me lembrava de anos anteriores. Arrumei a postura e fiquei na minha. Cocei o olho num “tick” de maneira que algo estava me incomodando. Ao certo era a presença dele. Olhei para janela outra vez, um trânsito lento, carros engarrafados. A viagem seria longa. Eu estava agradecido por ele não notar a minha presença. O barulho da roleta girando me fez olhar para frente, uma moça de olhos claros fechava o guarda chuva e procurava um lugar para sentar. Perdi-me olhando para as curvas dela e quando havia esquecido minha existência completamente escutei um:

—Oh! Gostosa, senta aqui do meu ladinho, senta?

Aquilo me fez morder lábios, a mesma voz de antes. O mesmo carrasco da risada. O idiota da poltrona atrás que por desprazer conhecia melhor do queria conhecer! Brotava insatisfação dentro de mim.

—Com licença!

Meus lábios cerrados foram amortecidos quando vi que a moça sentara ao meu lado. Deixei a mochila no chão e sorri para ela. Minha face ficou quente, ela me olhava. E por um instante me esqueci outra vez dos traumas que aquela risada me trazia. Senti insegurança por estar sentado ao lado de tamanha beldade.

—Ah! Me desprezou! Para sentar com esse idiota. Gatinha, ele não gosta disso!

A moça ficou quieta e eu mordi lábios de novo. Aquele trauma veio à tona quando olhei pra ele outra vez. Aquela cabeça que pra mim não passava de uma cabeça deformada. Um crânio grande demais para um pescoço pequeno, o modo como ele como usava um boné para esconder o cabelo pixaim que crescia dos lados. Aquilo me irritava! Tudo isso não havia mudado, anos antes na escola e era o mesmo imbecil. Minha primeira defesa fora ignorar a existência inútil daquela ameba que ria sarcasticamente. Ignorei, mas ele tinha aquela mesma crise de melancia. Aquilo de querer aparecer tirando com quem fosse. Bastava estar acompanhado (e ele estava). Tinha outro cara, outra ameba que ria das merdas que ele falava. Eu apenas o ignorei enquanto a moça balançava a perna em sinal de apreensão. Aquele cara, por que ele não podia ficar quieto?

Eram muitas vozes dispersas, a maioria que voltava naquele ônibus eram estudantes ou saiam do emprego. Vários grupos conversando, porém mesmo assim a voz do idiota era algo que nem os sons das outras vozes podiam silenciar. Ele estava na poltrona de trás, relinchando como um asno velho. Ele havia esquecido a menina, e agora encarnava em mim... Havia me reconhecido de quando estudávamos juntos no colégio. A oportunidade perfeita para ser escutado pelos outros.

—Tá ligado aquele professorzinho da escola... —Dizia ele depois de um “há há” cínico— Então, aquele cara ali —dizia apontando pra mim e ridicularizando meu nome— se trancava no banheiro do professor, aquele professor bichinha saca?

Minhas entranhas se contorceram, aquele filho da puta estava me difamando através de mentiras abusivas. Era a mesma coisa no colégio, os mesmos apelidos e tudo mais. E continuava sempre acompanhado dos risos. Aquilo o motivava, aquelas risadas era a sua “deixa teatral” para continuar a piada. E meu silêncio provava que aquilo era corrosivo. Não era a fala, ou, a gozação, ou até mesmo a garota do meu lado. Mas o fato de ninguém fazer nada. Droga! Eu agüentei aquilo na sala aula durante um ano na adolescência. E agora depois de vários anos nada havia mudado! O mesmo idiota me difamava, eu tinha que tomar uma providência... Do que vale a pena ter amadurecido, ter formado barba se certas coisas não mudam?

—Sem contar a vez que cortamos o cabelo dele... O babaca nem reagiu! Só ficou chorando. Chorãoooo! Chorão!

Os risos aumentavam e o suor invadiu meu rosto.... Me senti com dezesseis anos! A professora me elogiando na sala de aula. A melhor nota, o melhor comportamento. O sinal do intervalo batendo... Meu rosto cheio de espinhas, meu corpo sem definição. Aquele dia era harmonioso, eu não estava triste pelas tirações de sarro. Eu não estava triste por ter me mudado para uma cidade desconhecida e deixado todos os meus amigos em outro estado. Por algum motivo além dos meus óculos e da minha pele oleosa, uma garota linda me aguardava perto da cantina! Nunca havia ganhado um beijo antes de alguns dias atrás. Por isso me sentia eufórico, cheio de orgulho! Corri pelos corredores pensando que as coisas iam melhorar, subi a última escada senti algo na minha frente... Tropecei e caí de joelhos no degrau de ferro! Quando ia me levantar ouvi aquela risada sarcástica. Dois caras me agarraram, tentei me defender... Eu chutei o ar, fiz força. Gritei alto... Mas eles eram mais fortes... E riam! Mordi o braço de um deles, por sobrevivência e não por raiva. Ele me largou e logo senti um chute na minha virilha. Xingamentos e mais um chute... Eu senti dor, e escutei o barulho de um motor a pilha! Típico som que ouço quando vou ao cabeleireiro... Metade do meu cabelo é cortado, raspado, inutilizado. Me senti impotente e minha virilha ainda doía. Ouvi o grito do inspetor, eles correram! O inspetor me levantou e perguntou se estava tudo bem... Eu olhei pra ele ao mesmo tempo que notei que minha camisa estava toda suja com bolos do cabelo morto. Não agüentei, eu chorei... Eu choro! Por sentir desprotegido, por sentir o inferno na carne. Por ter espinhas na cara. Por não ter conseguido sequer me defender. Ele chamou a faxineira e os dois me levantam e levam-me até enfermaria...

Estou chorando quando os outros alunos se amontoam para me ver... Risos! Me sinto cercado por abutres que dissecam a minha carne. E eu a vejo, a garota por quem meu coração suspira... Está assustada, bloqueada por toda aquela massa de alunos sedentos de curiosidade. Eu abaixo a cabeça, sei que eles fizeram isso porque ela gostou de mim desde o início. Sei Que aquele imbecil estava dando em cima dela desde o começo do ano letivo e ela me escolheu! E ele não podia perder... O meu cabelo, as escoriações não são nada. Perto daqueles olhos dela de lamento. Ela sabe, foram eles. E eu abaixo cabeça e continuo a chorar! Me sinto abusado, perdido e envergonhado por ela me ver assim.

Ela sente culpa, ela também chora!

Depois de alguns dias peço transferência. Ela liga pra mim, eu não consigo atender. Estou trancado no quarto, não vejo justiça. Sou o adolescente mais complexado que existiu. Perdi minha garota, sou um fraco!



—Vai gostosa, sai desse banco com o chorão e vem pra cá... Vem?

“Você superou” tentei repetir essa frase. Meus punhos se fecham, já não agüento mais o tranco daquela risada. Penso se não existe nenhuma lei por rebaixar alguém num veículo público. Assim como seis anos atrás, ele vai sair imune (ao menos até que eu faça alguma coisa). Queria não passar por isso, queria apenas ficar na minha e não ser atingido por aquelas palavras. Ser outra pessoa! Queria ter sido forte e não ter deixado que meus pais tomassem o ato de me trocar de escola. Naquele momento eu queria respeito, me sentir íntegro e não violado por falas sem sentido por um imbecil sem intelecto. Dizem que você não deve ligar! Dizem que a melhor arma é ignorar o que te ameaça, o que te deixa mal. O que te incomoda e o faz lamentar... Mas isso não cessa, até você tomar uma atitude!

Assim que olhei todos aqueles olhos, assim que vi todas aquelas pessoas do ônibus me olhando sem reação, apenas esperando eu tomar um ato. Algumas riam junto com o idiota, e corroíam minha razão. Olhei pra moça que estava no meu lado, a cara de desgosto dela. O medo que ela sentia de reagir a ele... A forma com que ela parecia tão abusada quanto eu! E ninguém agia... Ninguém! Os abutres só que mais velhos e em outro ambiente. A moça me lembrou daquela mesma feição que abandonei na escola. “Minha garota foi embora! Eu sou o adolescente mais triste, trancado num quarto!”

Abraço a mochila de novo, fecho meus olhos... Desejo ter super poderes. Desejo virar vento e ouço o tilintar de moeda no chão! Olho em direção aos meus pés e vejo a moeda que perdi, não faço idéia de onde ela surgiu, se caiu da mochila ou o ônibus a atraiu. Agacho pra pegar a moeda enquanto o idiota ainda fica rindo, rindo e rindo! Movo meu pé e tem algo solido ali, levanto o pé esquerdo e vejo uma caneta azul, meio rachada devido à força da minha pisada contra o chão. Seguro a caneta, o ônibus freia... O barulho da campainha evidenciando que alguém irá descer no próximo ponto soa. Olho para o meu lado e a moça não está mais lá, ela levantou correndo. Parece que o idiota a perturbou demais.

—Ei gatinha, desculpe!

Ele avança para segurar sua mão.

Olho ao redor e ninguém se levanta. Ninguém presta atenção nos olhos da moça, ela está chorando. E ninguém está nem aí. Ele continua avançando com aquela mesma risada. Meus dentes trincam e meus olhos fecham.

Meu corpo parece que vai explodir.



As risadas, o cabelo caindo, o chute no estômago, aquela voz fanha... As lágrimas dela.

—Meu deus!

Alguém grita no fundo.

—Jesus!

Mais um grito!

E o sangue escorre nas minhas mãos. Sorrio, porque vejo nos olhos dele: dor. Sorrio, porque escuto ele tentando respirar. Sorrio porque a caneta está atravessada no seu pescoço e ele não pode mais rir de mim, ele não pode mais fazer ninguém chorar. Definitivamente ele cala a boca. Ele cai no corredor das poltronas. As pessoas ficam em silêncio, o sangue jorra. O amigo dele olha pra mim e corre: medo! A moça olha pra mim e põe as mãos no rosto e grita. Medo.

—Assassino!

Grita o cobrador.

A histeria do ônibus se agita as pessoas correm para porta para sair e pisoteiam o idiota. Fogem de mim. Acham que vou fazer o mesmo com elas, pois as minhas mãos estão cobertas de sangue e eu estou calmo, estou tão calmo. Contudo, no fundo me sinto triste. Pois sei que nos olhos delas eu sou o psicopata, o criminoso. O cara que fez o ato! Ninguém, nem mesmo a moça entendeu que meu instinto foi de auto defesa.

—Eu não quis matá-lo! Só queria que ele calasse a boca!

Repito quando um dos policiais me perguntam. É claro que eles não entendem o que aconteceu. Não entendem, o que eu digo sobre as risadas sobre o comportamento dele com a moça.

Eu sou o assassino porque segui meus instintos de defesa, os mais íntimos. Sou um assassino porque passei pela roleta e conheci o outro lado do ônibus. Sou o cara o mal porque fui instigado, puramente instigado pelo ônibus, pelo sistema, por ter tomado aquela atitude. Sou assassino por ter passado por isso antes e não guardar rancor. Por ter superado todas as minhas tensões. Esperando que o mundo mudasse e que pessoas como ele evoluíssem com o tempo.

Estou preso, isso não é uma novidade. Peguei vinte cinco anos, por homicídio qualificado. Preso em flagrante. Ninguém testemunhou o contrário, nenhum passageiro disse que a circunstância do ato ocorreu pela provocação daquele cara. Ninguém acreditou no que ocorreu na escola. Não haviam provas. Ninguém ficou do meu lado mesmo as pessoas daquele ônibus.

O ônibus...

Fora ele o percussor do meu destino. A força misteriosa que me deu a oportunidade de limpar da consciência daqueles abusos. Fora ele que me trouxe a caneta.

O ônibus foi o culpado pela morte do indivíduo tanto quanto eu!

Meu único arrependimento está na carceragem. Na minha liberdade interrompida. Se não fossem as circunstâncias eu não teria cometido o crime! Se na fossem as circunstâncias eu jamais teria entrado naquele ônibus.

Se o mundo fosse um pouco mais cooperativo, se ao menos as pessoas vissem os meus olhos de dor naquele exato momento. Se alguém obrigasse ele a descer.

Nada disso teria acontecido. E o assassino não seria eu. Só que as coisas são assim, tem dias que você é assassinado, e em outros dias você é obrigado a assassinar. Ninguém comete um crime sem razão, pode ser o mais breve, o mais impulsivo... Atos bestiais, pervertidos. Um crime sempre vem de uma reação. No meu caso, uma reação antiga, latente... Perdida num quarto fechado e em um rosto triste.

Só quero dizer que nem todos que praticam um ato desses são inteiramente culpados. Afinal, eu estou aqui, e pago a minha sentença todos os dias!

Um comentário:

Luiza Callafange disse...

Você acabou mantendo tudo, bocó, e nem me respondeu o email nem nada!!
Não vou repetir minha opinião sobre o texto novamente *bico
Mas que ficou ótimo ficou...Porque ninguém parou pra pensar o que se passa pelo ponto de vista do outro lado da história...