sábado, 18 de abril de 2009

Quando a morte invade sua sala



“Coração, por que tremes? Vejo a morte
Ali vem lazarenta e desdentada. ..
Que noiva!. . . E devo então dormir com ela?
Se ela ao menos dormisse mascarada!”

Álvares de Azevedo


O vento vibra as folhas das arvores, crianças dormem quietas num sono inocente, envolvidas na profundidade aconchegante de seus cobertores. Nas ruas os panfletos dançam acompanhados de sacos plásticos que bailam emudecidos, regidos pelo compasso do vento... Navios ancoram no porto, suas velas ainda se mexem. A noite é fria para corações partidos. O vento traz cinzas do passado, os quartzos balançam tilintados pela dor dos perdidos. Estes que ancoram não como os navios, mas como um espírito intenso de saudade estirado a longa noite. Poetas destilam poesias, enquanto o vento docemente os acaricia feito brisa.


Uuuuh! Ouve-se o som do vento, elevando os gritos imaculados guardados na garganta. A mulher estrangulada, o lobo que uiva, o menino que chora abandonado em um cesto.
Uuuuh!! Diz o vento em resposta maldita, amedrontando aqueles que ainda serão julgados pela lei do destino.

Uuuuh!!! Respira o homem aliviado vendo a morte sentada na sala de estar. Sabe ele, aquele é o fim. Partira junto ao último lançar do vento.


—Não haverá mais tempo de fechar as janelas, elas permanecerão abertas. Agora o que me resta é somente redenção.


Dizia o suicida com os pulsos cortados. Ele sangra calmamente, pensando em algum alivio definitivo que está prestes a chegar. Alivio que para ele é definido em não existir. Seu único pensamento se resume numa chance de não ser cheio de marcas, de não ser o alvo dos erros.

A ação havia sido minutos atrás e mesmo assim ele ainda conseguia sentir o ar frio da lâmina chocando-se a pele, em seguida somente ardor. Sangue havia jorrado manchando toda cama, os corredores até a sala. Observando o teto sua vista logo estremecia focos paralelos ligados a infância que lhe surgia à mente,sua vida ia embora junto ao sangue que coagulava aos poucos no chão.

Não tinha ele outra deficiência além da ausência de fé. Portava um corpo tão saudável que há anos não se gripará. Não tinha sequelas no cérebro ou apresentava chagas de uma cegueira... Ele não media assuntos com probabilidades, não existia aquela palavra em seu dicionário mental. E assim, simplesmente por falta de uma palavra, ele cortou os pulsos, jogando fora então todas probabilidades que sua vida tinha para o conserto. Talvez ele não tivesse realmente motivos de tomar aquela decisão. De riscar o corpo em escala com uma tinta incapaz de ser encoberta. Afinal ele não propunha motivos a si mesmo para o recomeço. E através disso assinava seu acordo em definitivo, sem entrelinhas... Somente com um ponto final.


E Naquela imensidão, ele a atraiu. Como se um ritual fosse realizado trazendo-a dos sonhos até a vida. Invocada por aquela poça de sangue transbordante que permanecia concentrada no meio da sala. Sangue vivo, escasso e bem vermelho, transparecia como um neon carmim.

Em cima da mesa postava-se o envelope escrito num tom azul numa boa caligrafia. Era sua despedida para os poucos que haviam compartilhados os momentos de vivência. Sua explicação para que outros soubessem o quanto havia tentado, mas de fato não havia conseguido.
Como um bom suicida, ele havia deixado sua mensagem. Algo que definiu depois como cláusulas de aborto, encoberta com uma histeria de pessimismo. Tudo estava conforme sua improvisação. Tudo menos a possibilidade de encontrar a morte em pessoa enraizada na sua sala, observando o vendaval que se estendia.

—Eis me aqui! Sangro meus pulsos por você, leve-me.


Disse o suicida para os olhos negros da morte, aceitando a idéia que ela estava ali pelo simples motivo de levar sua alma.
A morte que permanecia sentada em um dos sofás de costas para janela. Vestia um manto preto, mostrando um porte fino e bem integro.
O silêncio permaneceu, ainda que as cortinas beirassem o teto. Novamente o Suicida tentou:

—Eu terminei minhas preces, pode me levar. Não preciso mais de votos de despedida, esperei muito tempo por você. Estar aqui e olhar nos teus olhos, poder sentir o teu cheiro. Saber que minha única saída é me entregar nos teus braços....

—Fala comigo como se eu fosse tua musa - Cortou a imponente criatura num tom vibrante feminino—Não sou nada mais que causa natural na vida de cada ser. Por que me desejas tanto? Sequer sou bela?

—A beleza é apenas um conceito estabelecido por aquele que a retrata. O pintor que tece sua obra não limita a outros olhares se não o próprio. Para mim eis linda como forma distinta, minha última crença... Por favor, envolve-me nos teus braços, eis a única que pode aliviar o sofrimento de um desgraçado entregue ao desespero. Veja!—suplicou o suicida mostrando os pulsos cortados para a morte — Já está feito, não há mais volta... Acho que desde começo nunca houve crença de volta...

—Eis amante dos versos pelo que posso escutar. Só um eterno romântico falas na beleza com tamanho potencial puro. O problema com os românticos é que são estimados num lamento profundo, num drama reluzente. —A morte subitamente se calou, deixou-se ser absorvida por um silêncio cheio de sons urbanos e assim continuou su fala— Até parece que não me conhece, moço dos pulsos cortados. Sou aquela que vaga na escura noite! O ar frio sentido na espinha... A dona das moradas fúnebres. Se me conhecesse realmente não teria essa crença poética.

Respondeu a morte transparecendo uma calma de séculos, mostrando desdém pela crença do suicida. Ela que rapidamente levantou-se do sofá se agachando no chão frio. Logo tirou o capuz preto e olhou fixamente para o suicida.

—Então é essa face da morte!

Espantou o suicida deparando-se com algo que jamais imaginaria ver... Uma face tão humana quanto a dele. Olhos negros, pele pálida e cabelos cacheados numa beleza mórbida e obscura. A morte para o espanto do suicida, trazia uma beleza divina e incomun.

–E O que você esperava?

Indagou a morte para suicida notando sua expressão de fascínio.

—Eu não sei! Algo como um esqueleto, talvez.

— Vocês humanos sempre caem no mito da putrefação... Nem tudo é matéria sabia! Eu não sou somente o fim da carne... Sou vida também ora... Afinal tudo que fenece se transforma em existência. Quanto a minha face, eu poderia ter qualquer forma, mas prefiro parecer com vocês...
—Nós?

Perguntou o suicida confuso.

—Sim vocês!—Continuou a morte, agora caminhando pela sala olhando atentamente para os quadros na parede— Mortais... Humanos... Seres bípedes que se dizem operados pela inteligência e negligenciados pelo instinto. Vocês que transformam quase tudo em caos. Vocês que ferem o solo, agridem a terra, e mesmo assim fertilizam a vida. Vocês que conseguem por intermédio de um botão falecer mais existências do que eu consigo em uma década. Matam por números, riquezas e derivados desse meio terreno... E alguns—Dizia ela voltando a face para o suicida— até mesmo descontentes em tirar a vida do outro , matam a si mesmos...

Pela primeira vez o suicida pensava no dano que causara a própria vida.. Por um momento ele permanecia duvidoso pelas palavras ditas pela morte.
—O que acha agora meu caro... Não sou eu tão humana quanto à própria humanidade?

—Sim! É completamente humana...—Respondia o suicida enquanto a morte concordava mexendo a cabeça— E digo mais.... È tão humana quanto é tagarela.

—Como assim Tagarela?

—Você fala demais! Juro pensei que a morte tivesse um ar de descanso eterno. Mas não! tudo que vejo são ladainhas. Como se pode descansar com ladainhas sobre o quanto nós humanos somos desprezíveis? Acha que eu não sei de tudo isso?

—Eu acho que ...

—Com certeza você acha alguma coisa não é?... Mas deixa eu te falar, você não tem direito de achar nada. Você invade a minha sala e fica pregando essas filosofias de terceira... Mas que merda!

O suicida subiu numa nova postura levantando-se do chão, estava furioso. A morte esperava calmamente por uma brecha entre os gritos e discordias do suicida. E essa brecha se sucedeu ela disse o interrompendo:
—Eu não quero que você acolha as minhas filosofias e também não sou uma invasora e sim uma convidada afinal, quem causou a própria morte aqui?

—Qual é o seu propósito?
Cortou bruscamente o suicida bloquenado a pergunta.

—Matar, trucidar aniquilar... Cessar algo de sua existência.

—Eu não estava me referindo ao seu objetivo no universo.

—Ah! Desculpe sou meio direta... Eu...—fitou ela para paredes engasgando as palavras, tentava barra sinceridade mecanica que posssuia.— Apenas quero conversar com você, entende? Bater um papo.
—Não entendo, como assim um papo?

—Mas você é meio lentinho né... Um papo! uma prosa! um dialogo! Eu respondo suas perguntas e você responde as minhas... Aproveite, a maioria não tem essa oportunidade!
Exclamou ela sentando no sofá novamente.

—Oportunidade? Não vejo nenhuma oportunidade... Não quero conversar, eu quero morrer. Apenas quero morrer... È pedir demais é? Quem eu tenho que matar aqui, para poder morrer.
—Por Deus! Você consegue mesmo irritar... Olha o que está diante dos teus olhos... Você tem a oportunidade de questionar a morte... Entende? Dialogar comigo, saber o que virá... Esse é o custo para eu te levar. Ah... Sacou?
—Não me diga que pra morrer também tem preço?
—Capitalismo celestial meu caro, eu exijo algo e você me dá... Achou que era só cortar os pulsos e pronto. E então o que me diz... Aceita as minhas condições de ter um dialogo?

Continua....

2 comentários:

Amanda disse...

Hahah... Conversa com a morte. Nao sei se é assustador ou acolhedor. Será que saber tanto assim é melhor?

Aiai, morrer sem saber o motivo. Muito a nossa cara.
Duh. ¬¬

Bom o texto, quero ler a continuação.

Nathani Camargo disse...

Quero muito ler a continuação...

Mesmo com um tema dificil,continuo me encantando com seus textos...