segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Divórcio


"Seu dia nasce, sua mente dói...
Você descobre que todas as coisas gentis que ela disse, não fazem mais sentido. Ela acorda, e se maquia. Ela não tem pressa, Ela não precisa mais de você. E nos olhos dela você não vê nada. Nenhum sinal de amor atrás das lágrimas choradas pór ninguém! Um amor que devia ter durado anos! (...) (Beatles, for one). "

Entre folhas de papel rabiscado e uma mesa de vidro os dois estavam sentados em lados opostos. A caneta mexia grifando as exigências que logo eram debatidas entre os advogados. Parecia que o silêncio enfim havia chegado para os dois. Estavam diferentes um do outro, quietos e com olhos excessivos cheios de preocupação.
O homem olhava para os termos grifados e balançava a cabeça expressando um entendido constante. A mulher olhava o carpete azul, ainda meio fatigada com aquela situação. Tentava mostrar determinação, mas no fundo estava insegura, amedrontada com o futuro.
Com as mãos ela sufocava a bolsa de Capri enquanto sorria com lábios rubros expressando uma falsa determinação pessoal.
Por alguns instantes os dois se olharam! Durou menos de dez segundos e logo ambos cruzaram o rosto. Pareciam dois animais ariscos se estranhando, bichos que não se conheciam.
Na certidão de casamento ainda constava marido e mulher. No papel estavam juntos, só no papel! Porque quem visse ambos no mesmo recinto, nunca afirmaria que um dia aqueles dois estranhos haviam passado horas fazendo sexo pelos cômodos de um apartamento recém decorado. Ou que almoçavam juntos, jantavam juntos e depois dormiam juntos durante tantas noites em travesseiros quase colados.
Dois estranhos que se conheciam em tato carnal, em fases de lua... Que um dia quiseram ser mais que dois estranhos!
—De tudo meu amor serei atento! Antes e com tal zelo, e sempre tanto... Que mesmo em face do maior encanto... dele se encante mais meu pensamento...
—De quem é isso?
—Eu nem acabei e você já quer saber de quem é? Espera né!
—Tá! Tá! Continue!
—Quero vivê-lo em cada vão momento....E em seu louvor hei de espalhar meu canto!
E rir meu riso e derramar meu pranto...
—Ah! não gostei desse pranto...
—Por que?
—Ah sei lá! Pranto é uma coisa muito triste pra colocar num convite de casamento...
—Que droga Monica! Você não entende porra nenhuma de poesia!
—O que você disse?
—Que você não entende nada de poesia!
—Não! Não! Você disse aquela palavra que eu não suporto!
—Pranto?
—Não se faça de besta!
—As vezes você parece a minha mãe! Todo mundo tem direito de soltar um palavrão de vez em quando!
— Edú não to afim de discutir hoje!
—Posso continuar com o poema?
—Tá! Continue... Só espero que não tenha mais nada haver com pranto!
—Ao seu pesar ou seu contentamento... E assim, quando mais tarde me procure,quem sabe a morte, angústia de quem vive... Quem sabe a solidão, fim de quem ama... Eu possa me dizer do amor que tive! Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure!
—Sabe que eu gostei!
—Sério que gostou?
—Achei bonitinho esse final... Qual é o nome do poema?
—Soneto da...
—Da?
—Da fidelidade!
O pequeno trecho daquele soneto teve causa na conclusão de suas vidas. Ficou gravada em times “new roman” num negrito artesanal quase desenhado de nanquin. Se algo pudesse adivinhar o destino dos dois, seria aquela frase final, marcada na última linha de cada convite:

“Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure!”

Assim sem querer se realizou.
E em meio de tantos encontros, desencontros. Brigas e tomadas de sorvete no verão. Ali terminava os sonhos de filhos correndo. Nomes de meninos, sobrenomes que iam embora voltando a ser o que era: Nada.
Morrera tudo! A chama havia se apagado!
Mas nem sempre foi assim. Os dois tinham uma música bonita do Rufus Wainwright... Que uma vez tocou no fim de um filme quando se conheceram. E mesmo sendo o idioma francês (língua que nenhum dos dois compreendia bem). A canção permaneceu como trilha sonora do romance que nascia...
—Complainte de La butte!
Expôs a mulher.
—E como se diz isso?
Perguntou ele
—E eu sei lá! Acho que complainte é complainte mesmo! E La butte! É La búe...
—Bulie!
—Sem o li, faz biquinho igual no u!
—Assim?—Indagou ele com uma com lábios de peixe dizendo u.
—Que fofo esse biquinho!
Os dois riram naquele dia...
Sorrisos que não aconteciam mais. Só havia silêncio neles, silêncios nos olhos, na voz e no peito. De tal modo que a canção silenciava dentro de cada um. Com um piano constante e uma sanfona parisiense diminuindo a cada instante que os advogados carimbavam as folhas. E demarcavam o que iria para cada um.
—Está feito!
Falou o advogado da direita, do lado da mulher!
—Sim está feito!—Acrescentou o outro o advogado e logo continuou— Como vocês não tem filhos, o processo de separação conjugal foi mais simples...
Os advogados ainda esclareciam coisas como abandonar o nome de casado, e sobre o tempo que ambos haviam ficado juntos.
As palavras dissipavam no ar, alguns artigos lidos e tantos outros parágrafos quarenta e sete que pareciam entrar pelo ouvido e deixar um vazio de direito matrimonial no fundo de cada um. Paralisados uma parte deles pereciam sem se realizar... No intimo algo gritava, algo que tinha haver com alianças de ouro, com buques que atravessavam o salão de festa, na última palavra dita agora que se calava para sempre.
—Precisamos conversar!—Afirmou a mulher assim que ele entrou pela porta.
—Diga?
Ele largou a mala em cima da mesa e correu até a geladeira, procurando algo para beber!
—Quanto tempo faz Edú?
A voz dela foi quase encoberta pelo som da lata se abrindo.
—Tempo do que?
Indagou ele puxando um lugar na outra ponta da mesa.
—Do nosso casamento!
O assunto se lançou da boca dela!
—Por que está me perguntando isso! Aconteceu algo?
—Me diz Edú! Quanto tempo?
Os olhos da mulher estavam vermelhos. Notando a maquiagem borrada em volta dos cílios dela, ele subitamente deixou de tomar o liquido que estava na lata e respondeu:
—São dois anos Mô! Completa três em Janeiro!
—E o que temos além de brigas o tempo todo? O que temos além de você nunca saber o que eu sinto...
—Claro que eu sei como você se sente Monica...
—Sabe? Sabe que eu me sinto amargurada toda vez que você esquece que eu estou aqui em casa à noite? Sabe o quanto eu ainda me sinto frágil por... —Ela engasgou com o choro—Por ter abortado naquele ano!
Ele ficou estático. O trauma de ter perdido o único filho mexia com ele...
—O que você quer que eu diga? Que as vezes não suporto voltar pra casa e te ver com a cara presa no travesseiro. Sem me dizer boa noite! Sem sequer olhar na minha cara...
—E o que você quer que eu diga pra alguém que volta as quatro da manhã caindo de porre?
— Eu reconheço meu erro! Reconheço que fugi saindo e voltando tarde. Mas quantas vezes tentei te abraçar e você fugiu de mim! Quantas vezes eu me senti culpado e nem sabia o porque...
—Você nunca me entendeu Eduardo! Sempre...
—Nunca?—Gritou ele batendo a palma da mão no centro da mesa, a pancada balançou o objeto enquanto ele continuava— Se você fala isso porque sempre fiquei quieto nas nossas discussões!
Ela não disse nada. Olhava para decoração da cozinha. Decoração que ela sempre odiara.
—Eu me fazia de quieto, pra você gritar! Pra não te aborrecer por causa daquilo... Quantas vezes você quis discutir por falta de sentimento que você achava que eu não tinha! Quantas discussões nós tivemos porque você tem essa mania de achar que tudo não está bom! Eu odeio isso! Eu só queria chegar em casa e fingir que tudo está bem! Tomar um gole de cerveja e esperar que amanhã tudo vai se resolver!!
—Mas não vai Eduardo! Não vai!
Ela caiu em lágrimas longas. O ambiente ficou pesado e o barulho intenso do refrigerador (objeto que os dois tinham ganhado de presente de casamento) fechou o vazio da conversa. Ele a olhava ainda com o corpo quente de tensão, ela estava desgastada emocionalmente ferida pelas palavras dele, e pelas próprias palavras... Ferida pela vida conjugal que expirava. Nem parecia a mulher sorridente que tremia, anciosa que um dia subiu ao altar.
“Você, Carlos Eduardo Silva, aceita Monica Cristina Figueiredo como sua esposa e promete: amá-la...”
As palavras do padre vinham em sua mente. Enquanto a mulher ainda soluçava de choro.
”Fidelidade, amor e compreensão”
As palavras daquele juramento faziam com que ele se sentisse traidor do que havia aceitado. Ele traia o juramento... Traia porque sabia que seria melhor assim! Por mais mágoa que tivesse dela. Por mais que seu cérebro engatilhasse a fuga, o homem não agüentava ver a sua mulher em cacos...
—Monica
Disse ele quase sussurrando
—Talvez devêssemos...
Ele esperou até que ela prestasse atenção e logo continuou, tentando explicar o que nem ele mesmo sabia:
—Seguir um rumo diferente...
—Como assim?
Perguntou ela meio confusa tentando se recompor das lágrimas derramadas.
—Recomeçar!
—Como assim recomeçar?
—Seguirmos longe um do outro! Por novos caminhos!
—Você está falando em divórcio!
—Sim, eu acho que é isso mesmo!
A mulher ficou engolindo o assunto proposto. E quando ia dizer algo, talvez um “espere” ou um “ Você tem mesmo certeza disso” .
Ele deixou a mesa e saiu pela porta para rua. Ele jamais voltou! Assumindo pra si mesmo que a separação faria com que ambos se reconstruíssem.
Depois de algumas semanas a mulher segurou os papeis do divórcio pela primeira vez... As folhas bem grampeadas chegaram por intermédio do correio. Toda a preocupação que a ela sentia se transformou em mágoa... A mulher nunca o perdoou pelo ato final.
Ele no entanto não sentia lástima só medo de assumir que estava com medo. E como proteção para o próprio medo o homem se cercou de orgulho.
Os advogados posicionaram as folhas a serem assinadas...Os flashs do passado terminavam ali! As últimas assinaturas (feitas pelo antigo casal) transformavam para sempre o extinto casamento num eterno defunto velado em seu caixão.
Velavam a si mesmos, velavam o final da história.... Velavam o fim da união!
As alianças enfim enterradas! O ouro reluzente dentro de uma caixa pequena e apertada... Enferrujando cada letra do nome que ali estava gravado.
Os advogados fecharam as pastas, separando a burocracia, separando os dois.
E eles ganhavam a marca,”do casamento que não deu certo”.
Claro que ainda poderiam dizer para alguns que agora eram solteiros e omitir o estado civil de “divorciado” das folhas de pesquisa na rua. Mas no fim saberiam (cada um em seu íntimo) que um dia em algum mês eles haviam sido marido e mulher!
—Boa sorte daqui pra frente!
Desejou ele timidamente colocando o óculos de sol enquanto saiam do fórum!
—Pra você também!
Respondeu a mulher... Cruzando o lado oposto da avenida! Ambos ainda podiam escutar as batidas aflitas no coração... Que mesmo calado, triste e inconsciente dizia alto o último soneto, que queria ouvir. Talvez não fosse o coração, mas sim, um ator que interpretava na praça ali perto uma antologia poética do grande bardo carioca, completando as últimas palavras de fim...
E o soneto ecoou como último ditado para ambos, completando a sentença... Completando o divórcio!

“De repente do riso fez-se o pranto.... Silencioso e branco como a bruma, E das bocas unidas fez-se a espuma! E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento... Que dos olhos desfez a última chama! E da paixão fez-se o pressentimento... E do momento imóvel fez o drama! De repente, não mais que de repente,
Fez-se de triste o que se fez amante!!!!! E de sozinho o que se fez contente. Fez-se do amigo próximo o distante.Fez-se da vida uma aventura errante...

De repente, não mais que de repente.”

(Soneto da separação, Vinicius de Moraes).

Um comentário:

Luiza Callafange disse...

Você pegou dois poemas que eu gosto muito e fez uma linda história...Mesmo que termine em separação, mas que seja para que ambos possam continuar vivendo aquilo que deveria ser a verdadeira vida, trilhando caminhos diferentes, mas sempre com o rumo para o que houver de bom e de melhor para si...
:) Adorei, Cleber.