sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Morfina



No coma induzido, ele dorme imaginando um mundo cheio de esperanças...

Grita o nome da felicidade, o soldado está de volta a casa novamente. Um bolo de carne é servido a mesa, cheiro do molho vermelho com pedaços de pimentão. O ar fraternal parecia distante naquele campo de fuzilamento. Certas vezes o soldado ainda ouve os tiros, mas tudo não passa de uma lembrança distante, presa num outro canto do mundo. As borboletas que pousam na janela são mais significantes do que aquele pesadelo. Algo sobre um corpo em chamas. Algo que sua mente precisa esquecer, mas tudo está bem. Um dia a mais, um dia a menos e o esquecimento virá. A ocupação com o campo as palavras do pai na mesa do café, as costuras da mãe na varanda... A vida é linda. Com giz ele escreve no chão do quarto “sou um sobrevivente”.

Mas a morfina acaba depois de um dia. As dores da drástica amputação vêm à carne, o soldado abre os olhos. Então sente o cheiro do álcool impregnado nas paredes, é um hospital. Tem camas brancas e uma maca ao lado de um corredor cheio de cortinas remendadas. O soldado lembra-se dos tiros, do sangue derramado, e logo ouve os gritos dos pacientes que estão ao seu lado. Tenta se levantar, mas não pode... Pois está sem as pernas. Não há nada ali, além de um vazio e ataduras banhadas com sangue velho. Ele vê a realidade, sente a realidade e quando olha para si percebe que está gritando.

Um grito de agonia, áspero e latejante que aos poucos desperta a atenção dos enfermeiros. Estes correm aguçados com seringas cheias de morfina... Injetam fortemente em sua veia em segundos ralos a dor do rapaz é trocada por uma sensação de calma, por ter os músculos relaxados. Logo os olhos do soldado vão se obscurecendo notando aquela casa de campo outra vez... Algo que expande o sono e logo, as pernas renascem, os gritos cessam e pássaros estão cantando novamente. O soldado está de volta a casa novamente.

Somos todos soldados largados numa cama de hospital. Com a impressão de ter o controle da felicidade mesclada nessa ânsia de bem estar. Temos morfina no sangue, morfina nos olhos. Morfina que cessa revelando os trechos bizarros, mostrando que realidade não passa de uma dose alta e durável. Permanece no sangue e depois é liberada na urina e no fim o que se resta é saber que por mais que conseguimos sentir nossas pernas, ainda sim permanecemos aleijados.

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