quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Na margem


Ele caminhava através das poças de água recém formadas, cinco horas haviam se passado e somente agora o sol reaparecia bem no final da tarde. O trafego seguia acompanhado com o coro de buzinas e o ronco dos motores, os pedestres fechavam os guardas chuvas. Ele sequer tinha um guarda chuva. Levava as gotas da tempestade no ombro enquanto sua pele continuava numa cor pálida devido à falta de comida. O vento fazia curvaturas em sua mente, sua língua ainda guardava o paladar amargo da bebida do dia anterior. No começo ele desprezava as doses impuras de aguardente, mas com a chegada do inverno aquilo era o único elemento capaz de oferecer calor. E assim ele foi se acostumando aos poucos com o aquele liquido forte que as garrafas de vidro ofereciam. Havia alguns privilégios que só o álcool trazia nada mais que o esquecimento momentâneo de sua vida. Por segundos famigerados, ele não se lembrava do cheiro de urina acumulada entre os farrapos de sua calça ou do perigo da noite entre os becos que aprendeu a chamar de lar.A bebida aliviava as dores de estado, transfigurava a realidade, o fazia esquecer a condição de morador de rua. Bicho solto, homem sem lugar. Quando o vento trazia o sopro gélido noturno, aqueles olhos amargurados procuravam por jornais na boca do lixo. Os sacos pretos ofereciam a ceia da madrugada, bastava uma boa revirada e um pedaço daquele lixo se transformava numa refeição não muito digna para um ser humano. Afinal certas vezes até ele mesmo desacreditava em sua humanidade. As pessoas não o olhavam mais como semelhante, e sim como parte da calçada peça camuflada em meio aos estereótipos de vagabundo, mendigo, homem de rua.

O fato era que um cachorro era mais digno do que ele, o cachorro recebia o afeto nos olhos de uma senhora ou nos abraços de uma criança. Singularmente ele estava na margem da sociedade, isolado e restrito no índice de moralidade. Depois de uma longa caminhada o andarilho avistou um teto onde podia passar a noite. Apenas um leve desejo de descanso, o único desejo que podia satisfazer naquela noite. Ele fechou os olhos e logo as lagrimas escorreram pela face deixando um rastro branco devido a sujeira acumulada abaixo dos cílios por toda bochecha. Mesmo estirado a solidão por todos os dias do ano, ela ainda conseguia dilacerar-lhe a alma. Perguntas eram inevitáveis nesse limbo de sofrimento interior. Por quês viam aos lábios, mas nada era respondido, nem mesmo quando deus era citado havia respostas. Tudo não passava de um vazio estirado numa sensação estranha de corpo molhado. Diferente dos outros, aquele ser largado não continha um recinto para se secar, sequer havia uma toalha depositada em algum lugar que lhe trouxesse a sensação que sem demora estaria seco. Ele queria falar, queria ter voz e dizer que alguns têm pouco e outras menos ainda. Mas a voz não saia, só lagrimas por viver a margem de um eterno rio sem canoas. Aquele chão pós chuva o fez lembrar uma senhora assim como ele dona de rua, bem letrada que adorava definir com palavras doces, fundos trágicos. Definia a realidade que afrontava tantos que ali viviam. Dizia ela com mais cana do que sanidade:

“Somos partes da margem, mas vivemos no rio. Afogados de tantos olhos retorcidos, invisíveis para os barcos e sinaleiros que passam a pressa por nós. Dizem de margem, mas é no rio que nos afogam de solidão.”

Desabrigado ele concordava com aquelas palavras. Fazia tanto tempo que ninguém o tirava para uma conversa, perguntando como ele estava, ou sua opinião sobre o tempo. Não era fome que fazia seu corpo despencar diante as calçadas, não era frio que causava aquela morte por etapas. Mas sim essa solidão cheia de gente, por todos os lados “multidão”, mas ainda sim ninguém. Aos poucos aquele homem metade sombra de retalhos outra metade desconhecida das fases da lua. Deitou-se aos poucos no chão frio... Enfraquecido desmaiou, lembrando um nome: José João Roberto Silva”. Morador de rua á vinte sete anos, coração desmontado aos doze, mãe perdida aos sete. Sagrado em sua desgraça, tentou manter-se numa terra longe a dele, esperança desiludida. Anos que não prosperaram, circunstancias adoecidas. Sem ter apoio foi ficando, fincando no chão na caixa de papelão. Sem muito morreu ali dormindo, insuficiência respiratória. Sem documento ou história gravada, nada além de uma imagem da Bahia, lugar que deixou. Morreu ali na margem, enfim afogado na saliva crua da sociedade, não se restou nada de mais nada. Na manhã seguinte quando o sol surgir, depois de alguns dias estirado ao calor. Mais um membro daquele caos urbano apodrecerá, aquela peça moribunda alcançara o olhar dos passantes levando o cheiro de podridão.

E então aquele homem alcançará os olhares renegados, os passos corridos, ultrapassando aquela existência transpassada. E por uma vez terá o mesmo cheiro familiar, comum que demonstrará mudança.(Criara mudança). Sua carne será mergulhada em formol escasso e seu corpo será aproveitado para medicina legal. E mesmo quando não restar nada além de nada ainda assim restará um esqueleto no fundo da sala de genética. Porém mesmo assim será que alguém quando observar tal figura saberá que foi José? Ou João?Quem sabe Roberto?
Aquele que um dia viveu as margens dos becos de algum lugar.

2 comentários:

Unknown disse...

Numa sala de Medicina conheci Margarida. Passou também pela triagem que passou José? Que passou João? Que passou Roberto? Quem sabe? Tinha quase todos os dentes, era negra e havia dado à luz muitas vezes. Viveu sua obscuridade. Vida retirada. Retirante.
- Encantada Margarida.
- Encantada João.

(Abraço Amigo-poeta)

Felipe Anjos disse...

a margen em que todos vivem . mas ninguem olha para o lado e vê q seu amigo pode estar precisano de atençao ,mais q um animal imrasional .que mundo é esse os valores foram trocados e não há coisa mais interesante que dinheiro ,coisa futil ...
valores ,sentidos olhares misericordia ...nad disso apenas o descaso o dezamor ...
isso acontece todos os dias em nossas calçadas ...ai eu me pergunto onde foi ?
leia
http://felipeanjosopoeta.blogspot.com/